Recompensa indigna

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Aos 80 anos,
Waldir de Abreu cortou a assinatura de revistas, suspendeu idas a
restaurantes e vendeu o apartamento de Capão da Canoa no qual veraneou
por 12 anos. Ex-professor e ex-mecânico da Varig, está confinado à
própria casa, em Porto Alegre, enquanto trata uma leucemia e assiste ao
patrimônio murchar.

A queda no padrão de vida tem pouca
relação com a doença. Abreu sofre do mesmo mal de outros 6.329
aposentados da Varig: está perdendo o benefício privado aos poucos. A
contenção de gastos foi deflagrada em 12 de abril de 2006. Nesse dia, a
Secretaria de Previdência Complementar encerrou os planos 1 e 2 da
Varig no Instituto Aerus (que administra outros 27 planos de 22
empresas distintas).

De lá para cá, o instituto está
devolvendo aos aposentados os valores recolhidos ao longo dos anos.
Porém, o Aerus não tem recursos para quitar a dívida por completo. Por
isso, a aposentadoria privada de Abreu caiu de R$ 3,2 mil para R$ 109 –
sem contar os R$ 1,4 mil que recebe do Instituto Nacional do Seguro
Social – desde abril de 2006.

As saídas de casa estão
restritas às visitas ao hospital para quimioterapia. A doença foi
diagnosticada logo depois do anúncio de liquidação dos planos. Com as
restrições físicas do tratamento – Abreu emagreceu 20 quilos – , o
aposentado deixou de dar aulas em cursos particulares de mecânica e
perdeu outra renda. O plano de saúde dele e da mulher, Diva, de 67
anos, se transformou na prioridade do casal. Para cada um, são mais de
R$ 800 por mês. A fim de cobrir os gastos, Abreu vem consumindo a
poupança acumulada em 44 anos de serviço para a Varig.

– A
gente cortou todo o lazer e a qualidade de vida. Eu estava tirando o
leite da vaca. Agora, estou comendo a carne da vaca. Só espero que o
grande arquiteto me leve quando eu esteja comendo o rabo dela – diz
Abreu, num misto de bom humor e desânimo.

A intervenção do
governo ocorreu no início da crise financeira da companhia, que
culminou na venda da empresa em julho de 2006. Em abril, no dia da
liquidação, a dívida da Varig com o Aerus era de R$ 3,048 bilhões. Com
o fim dos planos, o Aerus foi obrigado a raspar os cofres e pagar os
beneficiários gradualmente, respeitando o valor proporcional recolhido
para cada aposentado.

O dinheiro do plano 1, onde estão 3,5
mil aposentados (75% com mais de 60 anos), está acabando. Desde o
segundo semestre de 2007, os aposentados sofrem com as ameaças de
interrupção do pagamento. O Aerus avisa no início de cada mês se haverá
recursos para o próximo contracheque. A situação do plano 2 é um pouco
mais confortável, com previsão de pagamento até julho. Abreu deixou de
se preocupar com a aposentadoria do Aerus desde que o seu benefício
chegou ao nível irrisório de R$ 109.

– É tão pouco que eu nem ligo mais – lamenta.

Corte dos benefícios foi de até 81%

O
ex-mecânico e a mulher vivem um caso extremo entre os aposentados do
Aerus, mas não o único – nem o pior. Desde a liquidação, a redução
média dos pagamentos no plano 1 foi de 81%. No plano 2, o corte médio é
de 43%. O casal conta que muitos amigos estão em situação ainda mais
delicada. Muitos dos aposentados do plano 1 – o mais antigo, criado em
1982 – fazem parte de uma geração de pioneiros de aviação brasileira.
São pilotos, comissários e funcionários de terra que passaram a vida na
Varig e se aposentaram com bons salários, honrando a fama da empresa de
mãe dos trabalhadores. Para estes, a queda no padrão de vida foi maior
e feriu o orgulho dos aposentados de tal forma que parte deles prefere
esconder sua situação financeira, relata Carlos Henke, 62 anos, membro
de uma comissão de aposentados do Aerus de Porto Alegre.

– O
mais difícil é manter plano de saúde e comprar medicamentos – diz
Henke, que trabalhou por 32 anos na manutenção e na administração da
Fundação Ruben Berta.

Ele recebe até 30 telefonemas por dia
para ouvir desabafos de amigos e repassar notícias. A última foi o
surgimento de R$ 88 milhões – pagamento feito pela Gol, que assumiu
parte do endividamento quando comprou a Varig. O Aerus deve receber R$
35 milhões, mas outros credores podem questionar a partilha dos
recursos. O dinheiro que vier será pouco. Em julho, a dívida total do
plano com os assistidos era de R$ 3,4 bilhões.

O que houve com o Aerus

1. Calote da própria Varig
No
dia da liquidação, em 12 de abril de 2006, a dívida da Varig com o
Aerus era de R$ 3,048 bilhões, segundo o atual liquidante dos planos,
José Crespo. Desde 1994, a Varig renegociou a dívida mais de 20 vezes.
Os trabalhadores acusam a direção do fundo de ter sido complacente com
a inadimplência da companhia ao assinar acordos que não eram vantajosos
para o Aerus. O último deles ocorreu em 2005. A Varig deveria fazer
repasses mensais a partir de janeiro de 2006. A garantia de pagamento
eram os recursos da ação contra o governo. A Varig pagou só a primeira
parcela. Com o calote, os participantes pediram uma intervenção na
administração do fundo, mas a Secretaria de Previdência Complementar
(SPC) preferiu acabar com os planos. Os trabalhadores também acusam a
SPC de ter demorado na busca de uma solução, já que a operação
contabilizava prejuízo há anos.

2. Extinção de imposto das passagens
Quando
o Aerus foi fundado, em 1982, o cálculo previdenciário que previa sua
estabilidade estava baseado em três fontes de financiamento:
contribuição dos participantes, repasse mensal das empresas
patrocinadoras e taxa de 3% do valor de cada passagem aérea doméstica
recolhida por todas as companhias. A cobrança da taxa deveria persistir
por 30 anos, mas foi suspensa em 1991.

3. Decisão política
Na
época da liquidação, a SPC justificou a medida como uma forma de
preservar o dinheiro dos participantes. Temia-se que o dinheiro do
Aerus pudesse ser utilizado para capitalizar a Varig, que sofria grave
crise financeira nos primeiros meses de 2006. Mas os trabalhadores
dizem que o fim do plano foi uma saída do governo federal para
facilitar a venda da empresa. Com a liquidação, reduziam-se os riscos
de uma discussão judicial futura sobre como seria feito o repasse para
os planos.

Saiba mais

1.123 pessoas recebem benefícios dos planos 1 e 2 da Varig no RS

Veja matéria no site do veículo

Por Alexandre Santi – Jornal Zero Hora – 3/1/2008

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